O presente relato de experiência expõe uma das possibilidades de trabalho do valor simbólico da alimentação na escola. Resultado da realização de estágio-pesquisa em uma classe noturna de Alfabetização de Jovens e Adultos, em uma Escola da Rede Pública Municipal de Ensino da Regional Pampulha, em Belo Horizonte, durante o período de 25.08.2009 a 24.11.2009.
Consideramos as dimensões objetivas e, sobretudo, subjetivas que envolvem o valor simbólico da alimentação e da vida saudável em vários contextos, dentre os quais o escolar, conforme proposto em documento da CNSAN – Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, intitulado “Alimentação e Promoção de Modos de Vida Saudáveis”, que incluem o gosto, o prazer, os valores, as questões simbólicas, as emoções e as relações sociais – os indivíduos e grupos com quem convivemos e que afetam nossas escolhas (CNSAN, 2004).
O mesmo documento observa que as ações educativas em saúde e nutrição devem ser desenvolvidas para além da simples transmissão de informações e conhecimentos, envolvendo troca de vivências e construção conjunta de estratégias para tornar a alimentação mais saudável, nos vários espaços da sociedade (CNSAN, 2004).
Dentre as observações realizadas, relatamos a realização do Projeto Alimentação e Vida Saudável, o qual realizou várias atividades que mostram as diversas possibilidades de trabalho na escola do valor simbólico da alimentação, considerando o contexto da realidade sócio-econômica e cultural vivenciado pelos alunos jovens e adultos do Noturno.
Quando iniciamos o estágio-pesquisa na Escola, o Projeto já se encontrava em andamento desde o início do mês de agosto de 2009, com culminância prevista para o mês de novembro de 2009.
As justificativas que fundamentaram a apresentação do Projeto consideraram vários aspectos da realidade sócio-econômica e histórico-cultural vivida pelos alunos jovens e adultos do Noturno da Escola:
Tendo em vista que os alunos do Ensino Noturno de nossa escola trabalham o dia todo e vêm direto para a aula, preocupa-nos a qualidade de vida dos mesmos.
São, em sua maioria, de condições sócio-econômicas precárias e não tem condições de se esmerar na preparação de sua alimentação.
Foram também destacadas as razões que levaram o coletivo dos docentes e coordenação pedagógica do Noturno da Escola a realizarem o Projeto:
Por isso, ao longo do de ano desenvolveremos um projeto de orientação sobre alimentação saudável, alternativas nutricionais de baixo custo e alimentos alternativos preparados com partes de verduras e legumes que normalmente são desprezados pelo consumo familiar.
Neste projeto, daremos ênfase a importância das frutas, verduras, legumes, cereais, etc. Serão trabalhados os nutrientes de cada grupo de alimentos, bem como a função dos mesmos para o corpo humano.
Além dos objetivos “escolares” propostos para o desenvolvimento do projeto, dentre os quais: desenvolver a leitura e a escrita, trabalhar as diversas tipologias naturais dos alimentos, conscientizar sobre a importância da boa alimentação, mostrar alternativas de baixo custo para uma alimentação nutritiva, ensinar a preparar receitas praticas de alimentos nutritivos, dentre outros, gostaríamos de salientar um deles, o qual relaciona-se ao valor simbólico e afetivo da alimentação – melhorar o relacionamento interpessoal e entre todas as turmas do Noturno, dos alunos e professores.
Dentre as ações previstas e realizadas durante o desenvolvimento do projeto, foram enfatizadas aquelas propriamente “escolarizadas”, dentre as quais:
*Utilizar o tema do projeto nas diversas disciplinas para informar sobre alimentação saudável, nutrientes, composição dos alimentos, função dos grupos de alimentos, etc.
*Utilizar diversos tipos de texto como receitas, informativos, descritivos, etc para o aprimoramento da leitura e da escrita dos alunos nas diversas fases de desenvolvimento dos mesmos.
*Confeccionar cartazes ilustrativos e informativos sobre o tema.
*Coletar entre os alunos receitas que sabem fazer e eleger aquelas que serão preparadas.
*Trabalhar as receitas selecionadas na produção textual e na matemática.
Durante a realização do estágio-pesquisa, registramos em Caderno Diário de Campo as ações previstas para serem desenvolvidas no projeto, dentre as quais destacamos o trabalho com o gênero textual Receita, na qual foram discutidas com os alunos jovens e adultos do noturno as diferenças entre receita culinária e médica, dentre outros aspectos:
Atividade Receita. Tipo de texto: Receita. Que outros tipos de receita V. conhecem? Só mulheres fazem receitas? (Recorte de gênero). Tem receitas só de coisa de comer? Que partes a receita se divide? Quantas partes? Um aluno lembrou da bula. Perigos da automedicação. Comparação receitas culinária e médica. Noção de quantidade (receitas). A Professora perguntou se alguém tinha alguma receita médica. A professora comenta que tem pessoas que sabem fazer receitas na prática e não são alfabetizadas. Trabalho com revistas, recortes palavras com vogais A/O/U, sílabas com apenas uma letra/vogal, pelo menos 04 palavras de cada, colar. A professora encerra a atividade, registrando no quadro as palavras construídas pelos alunos. (Caderno Diário de Campo, 08.09.2009).
As atividades eram retomadas pela professora junto aos alunos da turma de alfabetização de jovens e adultos observada, salientando os aspectos que envolviam a leitura e a escrita importantes na interpretação e discussão do gênero textual Receita Culinária:
A professora retoma a receita do bolinho de banana, realizando uma atividade em sala. Localize as palavras erradas, circule-as e depois, pense: “como eu escreveria essa palavra”? A professora registra no quadro (...) Atividade do Jogo de 7 erros: consistia em descobrir os erros de ortografia, grafia errada e escrevê-las corretamente no caderno. Identificar a palavra errada, consertar a palavra, escrevendo corretamente. A professora informa que irá mandar buscar o dicionário, mas pediu aos alunos que tentassem procurar sem auxílio do dicionário. Mas esclareceu que, mesmo assim, é mais uma atividade: como procurar uma palavra no dicionário. A professora pergunta a um aluno: por que você acha que esta palavra está errada? (...) A professora distribuiu a receita correta do leite condensado caseiro e modo de fazer. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
Para além da abordagem “escolarizada” do gênero textual Receita Culinária, a professora desenvolveu atividades práticas que envolveram a preparação da receita junto com as cantineiras da escola, contemplando os aspectos sócio-afetivos, culturais e simbólicos de uma boa alimentação para uma vida saudável, não deixando de colocar questões para os alunos pensarem, envolvendo os componentes curriculares de português e matemática:
Depois do intervalo: Preparação da Receita do Bolinho de Banana na cantina. Dúvidas colocadas: 5 colheres de açúcar (que medida?). Que colher é essa? Que tipo: de sopa, de café, de chá? Todos vão para a cantina preparar a receita. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
No entanto, observamos que os aspectos histórico-culturais que envolvem a alimentação – sobretudo no seu preparo – permanecem ainda nas relações de gênro da sala, tendo em vista que na divisão das tarefas e nas atividades desenvolvidas na cantina da escola observamos um recorte de gênero: as alunas (03) descascam e amassam as bananas. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
Na problematização do conteúdo da receita culinária, a professora colocou algumas questões que envolvem a clareza na redação e, sobretudo, nas medidas, por se tratar de um texto que deve ser padronizado matematicamente, para que seja entendido por qualquer pessoa que vai preparar o prato, o que muitas vezes não acontece:
E pergunta: para uma receita são 6 bananas e para 3 receitas são: os alunos respondem 18 bananas. A Professora pede inicialmente que os alunos (04) contem as bananas (19). A professora pergunta aos alunos: 4 colheres de farinha de trigo é para uma receita. Para três receitas são: os alunos respondem 12. Cinco colheres de açúcar é para uma receita. Para 3 receitas são: os alunos respondem 15. A professora pede aos alunos que pensem novamente na questão colocada na sala. E afirma que o texto pode conter erros, ser criticado: xícara (que medida?), copo (que medida?). Qual é a solução para harmonizar, resolver o problema. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
A professora propõe a questão durante a preparação da receita e pede para que os alunos pensem e reflitam observando o trabalho executado na cantina da escola para depois debaterem em sala, enquanto a receita fosse finalizada pelas cantineiras:
Pensem e depois respondam (após a preparação da receita). Enquanto isso, a professora pede aos alunos para pensarem sobre a questão proposta na sala: qual a solução para tornar as medidas (colher, xícara, copo) fáceis de serem entendidas por qualquer pessoa que leia ou faça a receita? Que colher? Que copo? Que xícara? Que medida? A professora pergunta aos alunos que solução diferente deveria existir em toda receita? Um aluno responde que deve ser expressa em números, em gramas. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
Ouvindo as opiniões dos/as alunos/as e salientando que o que está escrito na receita culinária também pode ser mudado, como qualquer outro gênero textual, abrindo espaço também para a participação das cantineiras na discussão de como melhor preparar a receita culinária: a professora comenta que a receita pode e deve ser mudada na falta de algum ingrediente (canela). As cantineiras (03) participam e opinam também. A massa é preparada para ser fritada pelas cantineiras. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
Após retornarem a sala, a professora problematiza com os/as alunos/as a prática de preparação da receita, particularmente se as instruções contidas no gênero textual estavam claras e corretas, relacionando-as com os componentes curriculares de português e matemática trabalhados em sala:
Todos retornam para a sala. Os alunos pensaram a solução das medidas na receita e a professora registra no quadro a receita com as correções. E pergunta: como transformar colheres em gramas? Qual colher? Como que pode medir em gramas? Tem dosadores graduados. E afirma que uma receita, um texto copiado não significa que está certo. Importante observar, ver alguém fazer. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
Desenvolvendo uma atividade escrita, a professora sistematiza as discussões e debates realizados com os/as alunos/as:
Atividade folha: pintando e descobrindo o que está escrito na Receita. Crítica do gênero textual receita: importância de saber o que é e de fazer uma crítica do conteúdo/tipo de texto. Conhecer os gêneros textuais. Organizar o texto no caderno de acordo com as características do gênero textual receita. A professora avisa que, na semana da criança, vamos fazer a receita (dia do bingo). Os alunos discutem entre si o que deve ser colorido na receita emendada. A professora pede aos alunos para olhar a receita anterior para copiar a outra receita corretamente no caderno. (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
Mas o projeto desenvolvido caminhou para além de uma simples abordagem “escolarizada” envolvendo alimentação e vida saudável, propondo e realizando atividades que envolviam a dimensão afetiva e simbólica da alimentação, na medida em que reuniu alunos/as, professores/as, coordenação pedagógica do noturno, direção e, sobretudo, a comunidade escolar no denominado Jantar da Primavera, cuja temática específica escolhida em 2009 foi nomeada de Jantar Verde Amarelo, evento anual tradicional realizado pela Escola no turno da Noite, o qual não se esqueceu do aspecto simbólico, preocupando-se inclusive com a decoração dos pratos e do pátio da escola:
Programar com os alunos um jantar onde sejam preparadas as receitas selecionadas, primando pela qualidade nutricional das mesmas.
Decorar o pátio da escola com material reciclado, flores, balões e outros para ambientar o espaço para o jantar.
Preparar os pratos do jantar, junto com os alunos, sendo que cada turma se responsabilizara por um item do jantar.
Realizar, no dia 17/11/2009 um JANTAR VERDE AMARELO, para alunos e professores do Ensino Noturno.
Em seguida, a professora faz o fechamento da atividade com os alunos, que envolve aspectos para além da dimensão “escolar”, contemplando as dimensões sócio-afetivas e simbólicas envolvendo alimentação e vida saudável: o bolinho de banana chega na sala. Todos provam, comentários. A cantineira recomenda mais canela e um pouco de sal (“uma pitada”). (Caderno Diário de Campo, 15.09.2009).
A proposta de avaliação das atividades desenvolvidas pelo projeto envolveram, além dos aspectos cognitivos e de ensino-aprendizagem, as dimensões formativas e atitudinais dos/as alunos/as da EJA/Noturno, dentro de uma perspectiva contínua e formativa:
A avaliação será de forma continuada, observando-se o interesse e o empenho dos alunos em cada fase do projeto.
Também serão avaliadas as produções de textos, atividades em matemática e demais atividades executadas em aula nas diversas disciplinas.
A observação dos professores deverá, inclusive, apontar o aluno destaque em assiduidade e em desempenho no projeto para receber o premio de destaque da turma.
A realização da atividade de culminância do projeto foi antecipadamente divulgada e discutida com os/as alunos/as do noturno da escola, envolvendo principalmente a participação deles/as na preparação do Jantar da Primavera, contemplando a dimensão formativa proposta pelo projeto:
A professora avisa sobre o Jantar da Primavera, na 5ª. feira, 12.11.2009, onde será trabalhada a questão alimentar, enfatizando a alimentação saudável. (Caderno Diário de Campo, 20.10.2009)
Aviso sobre o Jantar da Primavera, em 12.11.2009. (Caderno Diário de Campo, 03.11.2009)
Jantar da Primavera adiado de 12.11.2009 para 17.11.2009, devido a Avaliação Externa do SIMAVE (...) Discussão com os alunos das frutas, legumes e verduras que deveriam levar para o Jantar da Primavera. (Caderno Diário de Campo, 10.11.2009)
Os recursos materiais e financeiros necessários para a efetivação do projeto pelo coletivo docente do noturno foi viabilizado pela coordenação pedagógica e direção da Escola, contando também com a participação dos alunos, que contribuíram na medida de suas possibilidades econômico-financeiras e consistiu em:
*Aluguel de cadeiras e mesa para o jantar.
*Compras de frutas e outros itens alimentícios para complementar o que os alunos trazerem
*Aquisição de flores para os alunos de uma das turmas ornamentarem o espaço do jantar.
*Confecção de medalhas e diplomas para premiação dos alunos que se destacarem em aproveitamento.
*Revelação de fotos do evento.
O Jantar da Primavera 2009, cujo tema alimentação saudável (frutas e saladas) foi realizado na noite de 17 de novembro de 2009.